“A leitura é a apoteose da escrita”, disse o escritor Alberto Manguel.

Ler a obra Nas montanhas do Marrocos, da jovem escritora Luisa Bérard, foi realmente uma espécie de apoteose, pois este romance, definido na contracapa como “épico e inesquecível”, vai bem além do épico, ou melhor, imprime ao épico um quê de lírico, evidenciando sentimentos e estados de alma face aos eventos, deixando ver que não estamos diante de gêneros que se opõem. Pelo contrário, ambos se enriquecem, uma vez que a subjetividade, característica do gênero lírico, dá à narrativa do gênero épico, este mais objetivo, um tom de leveza, ao trazer todos os ingredientes que movimentam um romance épico: aventuras, heroísmo, batalhas etc.

Voltando a Manguel, é interessante e pertinente uma percepção que ele tem dos escritores e dos leitores: os escritores, diz ele, cozinham uma história, misturam os ingredientes do enredo, apimentam uma cena, acrescentam pitadas de ironia, põem molho, retratam uma fatia de vida. E ao falar dos leitores, define-os como aqueles que saboreiam um livro, banqueteando-se com poesia (...).

Nessa perspectiva, eu diria que, ao ler Nas montanhas do Marrocos, pude viver essa sensação de “banquetear-me” com uma escrita refinada, cuidadosa e uma escolha lexical que favorece aos leitores desta obra uma viagem no sentido mais literal da palavra, a viagem que promove surpresas, que nos leva a descobrir pessoas e mundos distintos. Através de sua obra, a escritora Luisa Bérard nos apresenta diferentes personagens e costumes e nos leva a conhecer lugares belíssimos, visualizados por descrições detalhadas, curiosas, onde se percebe a acuidade da autora em trazer aos leitores um misto de ficção e realidade. Trata-se de uma narrativa envolta em encontros, desencontros, descobertas, sentimentos contraditórios, que vai descortinando cenas surpreendentes.

Por mais que um romance seja uma obra de criação, vê-se sempre aqui e acolá, sobretudo em um texto sensorial como o da autora desta obra, reflexos de vidas humanas e de sociedades que podem estar próximas ou distantes dos leitores.

Ler este livro foi um ato de contemplação diante de cada página, movida por um sentimento de leitora ávida por um livro que tem em suas mãos, e com o qual vai se encantando mais e mais. Há uma riqueza de detalhes ao longo do livro, que fica difícil pontuar o que mais encanta. A se comparar com um bordado, a autora enche os olhos dos leitores com a alternância de pontos e cores diferentes em sua narrativa, e aqui, literalmente, vendo a palavra em sua etimologia, como se o texto tivesse sido tecido com arte e cuidado em suas filigranas.

Tudo no livro me parece estar na medida certa, uma vez que as incertezas que estão por vir na trama são igualmente tecidas com maestria. Ao longo da leitura, essa forma de narrativa faz crescer o enredo, como, por exemplo, quando a autora fala da “persistência” da personagem central em afastar seus pretendentes. Há, neste momento, um paradoxo interessante, que é o de atraí-los, no intuito de mantê-los afastados, numa espécie de ruptura com o que está estabelecido.

A escolha de trazer o Prólogo é muito rica, interessante, e traz aquilo que sabemos ser uma forma de atrair leitores, ao expor um trecho da trama que virá a ser de grande importância, em um momento posterior da narrativa.

Faço os comentários sem linearidade, deixando ver o que mais me tocou nesta leitura. Os mundos diferentes vão surgindo com a trama, de tal forma a se perceber, num dado momento uma espécie de confronto entre a vida real e a vida social. A delicadeza com que os diálogos ocorrem, na tentativa de superar o preconceito, dá à trama um novo espaço, e que eu ousaria definir como uma aproximação de fatos que dão credibilidade à história, tão próximos que estão de fatos da cotidianidade de todos os tempos.

E falando em preconceito, ressalto a evocação de obras com as quais os leitores vão se identificando, por terem feito parte de livros presentes em muitas bibliotecas familiares. Ao citar Jane Austen, considerada pelo crítico literário Jacques Lux, em 1910, como uma “Romancista de outrora” e que, segundo ele, escrevia romances extraordinários pelo fato de descrever tão bem as coisas mais simples, foi impossível não fazer imediatamente uma analogia com Luisa Bérard.

No livro em pauta, a autora imprime um quê de extraordinário, a partir de fatos ordinários: a protagonista do idílio em torno do qual os movimentos ocorrem, é uma jovem abastada que vai passar uma temporada em Londres. Essa viagem implica uma quase fuga de si-mesma, um momento em que o estado de alma da protagonista vive a necessidade de se afastar um pouco das turbulências das imposições circunstanciais de seu mundo. A travessia do Oceano em um navio cargueiro, contrastando com o luxo das embarcações turísticas, surge como algo incomum, e passa a ser palco de uma série de acontecimentos. Tudo pode parecer muito ordinário, mas é o entorno dessas narrativas que faz a diferença: um amor improvável, situações abruptas, de rupturas, de situações misteriosas, encobertas por um véu de suspense. Enfim, há uma série de eventos entre o suspense, o confronto de mundos e pessoas, que se descortinam pouco a pouco. Em meio a tudo isso, há a presença de sentimentos contraditórios, sentimentos que nascem de olhares, de gestos, e que provoca, de forma gradativa e ascendente, o interesse dos leitores pela trama. Quanto mais nos aproximamos do final do banquete desta leitura, vamos sendo tomados, enquanto leitores, por uma vontade de “saborear” mais lentamente cada cena, cada palavra, as palavras que Michel Foucault trata como signos a serem decifrados. Sigo a perspectiva do autor aqui mencionado, e tento ir das marcas visíveis ao que se diz para além delas. Só assim, as palavras não ficam emudecidas, adormecidas, também segundo Foucault, que diz ainda: “não há montanha que seja tão vasta que esconda ao olhar do homem o que ali está”.

Daí em diante, um entrecruzamento de diferentes hábitos e culturas faz surgirem rituais e protocolos a serem cumpridos. Nada é simples, nem ordinário, como falei pouco antes, na analogia entre Jane Austen e Luisa Bérard. Os leitores podem mesmo dizer que, em muitos momentos, precisam de uma pausa para respirar, diante da perplexidade, provocada por algumas situações inusitadas.

Por fim, cheguei LOGO ao epílogo – antes mesmo do que esperava (eram 564 páginas...), pois a excelente trama ditou a cadência da leitura. E se alguns definem o Epílogo como uma espécie de HORS D’OEUVRE, o que se contrapõe a uma outra interpretação, que é a de um ADEUS ao público leitor, como leitora, opto por dizer à autora: À TRÈS BIENTÔT, j’espère!

Um livro lindo! Uma leitura de excelência!

Um livro que recomendo: Nas montanhas do Marrocos

Tenho ouvido muitos comentários sobre o “não gostar de literatura nacional”. Até coloco essa questão para meus entrevistados aqui no blog, querendo entender a razão desse “não gostar”.

É algo espantoso, realmente. Nem estou falando dos clássicos de nossa literatura, alguns traduzidos e aclamados no mundo inteiro, mas de novos autores e autoras brilhantes.

Terminei de ler, recentemente, uma dessas novas autoras e seu primeiro romance. Obra de fôlego, custa-me acreditar que tenha sido a experiência inicial dela. Parece um texto de escritora profícua, com grande produção. E, no entanto, é, de fato, a primeira obra dela. Publicação independente, como temos visto tantas, uma vez que as grandes editoras procuram o caminho mais fácil para lucrar, que é a tradução de autores estrangeiros, alguns de qualidade duvidosa... em vez de apoiar os autores e autoras nacionais.

Estou me referindo ao livro “Nas montanhas do Marrocos”, de Luisa Bérard, autora que tive o prazer de conhecer na Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, em outubro passado.

Uma história envolvente, que se passa na metade do século XIX, inicialmente na Inglaterra. Acompanhamos a trajetória de uma personagem, Katherine, uma mulher à frente de seu tempo, que se interessava por coisas diferentes, não usuais às mulheres da época, mais preocupadas em arrumar bons casamentos entre seus pares. Pois ela diferia dessa imagem. E, por razões que não quero adiantar, ela se vê numa viagem à Grécia que irá mudar completamente sua vida.

Isso porque ela acaba chegando ao Marrocos, em um contexto absolutamente impensável para uma nobre inglesa. A história se desenrola com muita emoção, sensualidade, descrições de locais incríveis (eu sou capaz de apostar que a autora conheceu pessoalmente todos os locais que descreve com riqueza de pormenores!).

E um final imprevisível... que não será objeto de spoiler, claro!

Na dedicatória feita para mim, ela me desafiou a tentar compreender as sutilezas e anseios da alma feminina.

Confesso que consegui. Mais do que isso, determinadas passagens do romance dela me reportaram a algumas semelhantes de meu romance e foi com imenso prazer que percebi as sutilezas, a elegância, os anseios... e as sensíveis diferenças entre um texto masculino e um feminino.

Só espero que, quando eu crescer, eu consiga escrever com tal elegância, finura e riqueza de detalhes que só as mulheres conseguem atingir.

Parabéns, Luisa! E que venham novos livros magníficos como este!

Ao iniciar a leitura de “Nas montanhas do Marrocos”, de Luisa Bérard, e ainda sem saber se o enredo terá a mesma riqueza da narrativa, me surpreendi com o talento de Luisa como narradora. Para o primeiro romance, é impressionante o nível de detalhe utilizado, o que me fez lembrar os romances de Ken Follet e a descrição de uma pintura/mural, por Umberto Eco no seu livro “O nome da rosa”.

Em se tratando de um romance ambientado na primeira metade do século XIX, em dois países de hábitos distintos, a autora inclusive joga com o tipo de linguagem utilizada, para melhor caracterizar a narrativa. Quando descreve os acontecimentos que têm lugar na Inglaterra sua linguagem é bem mais rebuscada, nos reportando à vida nos sofisticados ambientes da nobreza.

Também coloca no romance as novas tendências sociais que teriam lugar com a Revolução Industrial. A heroína Katherine ou sua amiga Lauren podem ser vistas como precursoras das mulheres que adviriam após estes movimentos de reformas sociais. Elas não se adequam apenas às funções previstas para uma nobre inglesa, mas se interessam por assuntos diferentes dos restritos às jovens de sua linhagem, cuja expectativa era se tornarem esposas e mães, ligadas apenas às formalidades da corte.

– Estou sem saber o que dizer. Você realmente pretende trabalhar em um hospital?! Seus pais estão cientes dos seus projetos? – inquiri apreensiva, rememorando as palavras da escritora Mary Wollstonecraft sobre a necessidade das mulheres de serem economicamente independentes (BÉRARD,60). Naquelas quatro paredes, constatei a silenciosa e discreta revolução no padrão de comportamento feminino ocorrida nos últimos anos (BÉRARD,111).

Ao longo do livro vejo que Luisa criou um intrincado romance, mas tem perfeito domínio sobre todas as cenas e personagens. Com toques sutis nos indica possíveis rumos para a história.

Enquanto a Sra. Ashmole relatava sua história, fiquei meditando como as nossas vidas podem ser radicalmente alteradas, independente da nossa vontade (BÉRARD,112).

As várias histórias dentro da história acontecem de forma bastante alinhavada, é uma teia que vai se costurando sem que ao longo do romance tenha ficado um único fio solto. Também as citações – sejam de personagens reais, obras ou monumentos – que enriquecem o texto são todas cuidadosamente inseridas na linha do tempo. Embora os personagens e a trama sejam fictícios, o suporte histórico, no que pude conferir e apreender muitas vezes, está irretocável.

Ao longo do livro, mais de uma centena de personagens vão desfilando aos nossos olhos e cada um deles tem sua participação no intrincado romance que se desenrola em vários cenários, na sofisticada Londres, na cidade Imperial de Fez no Marrocos, no condado de Derbyshire ou pelo deserto e em muitas outras localidades, dando mais e mais vida ao romance.

“Nas montanhas do Marrocos” se lê de um só fôlego e nele está retratada toda a gama de emoções humanas – amizade, amor, inveja, maldade – e todas estas emoções conseguem ser descritas de forma impecável por Bérard. Os trechos do Marrocos nos fazem sonhar com os contos “As mil e uma noites” e nos trazem descrições que nos deixam emocionada:

A temporalidade permeava o cotidiano. Fazia-se hoje o que seus antepassados fizeram, da mesma forma que um dia seus descendentes o farão. A perpetuidade do homem alcançava, neste mundo intocado pela fatalidade insensível do tempo, um significado singular. Na infinita e silenciosa imensidão do deserto, sobreviver em seu ambiente hostil requer a sensibilidade de ouvir e compreender os limites e a profundidade da existência humana. E as ondulantes e majestosas areias do mítico Saara, habitadas pelo orgulhoso povo tuareg, são testemunhas da essência deste insólito viver (BÉRARD,399).
Num mundo repleto de mundos misteriosos e desconhecidos, o deserto contraditoriamente sintetiza o tudo e o nada (BÉRARD,399).
O despojamento paradoxalmente restaurava no ser humano a verdadeira dimensão das coisas, invariavelmente atropelada no dia a dia por exigências supérfluas (BÉRARD,399).

Para mim esta passagem acima foi o relato mais profundo, o que mais me tocou dentre tantos outros igualmente lindos. Ele nos leva a uma reflexão do que realmente importa, do que realmente tem valor; do que significa estar em paz consigo mesmo e com os demais. Em um mundo de contínua alternância de “mundo repleto de mundos“, construído a cada capricho da natureza, dos ventos e das areias que não se apegam a coisa alguma. Consigo imaginar este cenário como uma feliz metáfora da própria vida que se faz e refaz a cada dia, a cada simples capricho do destino.

Dentro desta alucinante aventura que queremos saber como ficará, esta parada no deserto é também uma metáfora da necessidade de, num mundo extremamente conturbado, pararmos um pouco para refletir.

A escrita de Luisa tem a versatilidade de nos levar da sensível passagem da conversa sobre a vida no deserto às superficiais expectativas da sociedade inglesa com o mesmo grau de cuidado nas descrições:

– O conhecimento necessário ao nosso estilo de vida é transmitido dos anciões às gerações vindouras. A formação acadêmica das cidades não tem qualquer utilidade no inóspito deserto (BÉRARD,400).
– Chega de desculpas esfarrapadas ou não responderei por mim! – verbalizou mamãe raivosa. – Suba agora mesmo para o seu quarto e se apronte como manda o figurino. Os baldes com água quente para o seu banho já foram despejados na banheira. Daqui a pouco a Srta. Collins estará aqui para as suas aulas – ordenou peremptória. Sem me dar chance de replicar, encaminhou-se ao jardim, como se nada tivesse acontecido, abandonando-me sozinha com as minhas frustações pela injustiça da situação (BÉRARD,21).

Todo o livro nos prepara para um final surpreendente. E para termos um gostinho a mais da cuidadosa e profunda escrita termino com o texto:

A vastidão infinita que confronta o homem a assimilar a pequenez de sua efêmera existência, onde a pretensão humana é impiedosamente esmagada pela indiferente hostilidade do amplo vazio (BÉRARD,406).